quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

BICHOS

De: SÍLVIA CORRÊA

Chip de solidariedade.

Os motoristas metiam a mão na buzina e puxavam o carro, como
se desviassem de uma pedra. Mas não havia pedra Sexta, 2 de dezembro.
O congestionamento em São Paulo batia todos os recordes e lá estava eu, presa na
marginal Tietê. De repente, a fila de carros andou. E, à minha frente, um a um,
os motoristas metiam a mão na buzina e puxavam o volante, como se desviassem de
uma pedra. Mas não havia pedra.Pelo meio-fio, entre a pista e o murinho do
canteiro central, cambaleava um cachorro, saliva escorrendo, exausto. Quando ele
se desequilibrava em direção à faixa, alguém o espantava com um buzinaço.Ele
passou por mim, mas a cena empurrou meu carro ao primeiro ponto de parada. As
buzinas, agora, eram para mim. Paciência.Fechei o carro e fui voltando pelo
meio-fio. Ele andava no contra-fluxo e, mesmo a passos lentos, se afastava.
Corri até chegar perto o bastante para chamá-lo, mas longe o suficiente para não
assustá-lo. "Ei, vem cá!" Ele olhou para trás, abanou o toco de rabo e deu meia
volta, caminhando em minha direção. Era um boxer, aparentemente de raça pura e
com coleira.Olhei em volta. Só havia carros e um conjunto habitacional que
lhe rendeu o nome. Peguei Cingapura no colo e caminhei de volta entre buzinas e
comentários de motoristas que berravam por um colinho. Difícil...Levei
Cingapura a uma clínica para banho, exames e o início de mais um processo de
adoção. Estava cansada e atrasada, mas aliviada.
Cingapura cruzou meu caminho uma semana depois de Nice. Na sexta-feira anterior, estava a caminho do aeroporto de Congonhas quando, claro, o trânsito parou na 23 de Maio. À minha
frente, um a um, os carros passaram a desviar de um Uno vermelho, estacionado na
faixa da esquerda. Quando chegou a minha vez de desviar, notei que havia uma
senhora apoiada na porta do motorista, claramente passando mal. Subi no canteiro
central. Com dificuldade ela me disse que se chamava Eunice e que havia se
submetido a uma laparoscopia dias antes. Agora, mal conseguia respirar. A dor
piorava. Achei o telefone do cirurgião na agenda de seu celular. A orientação
foi clara: ela precisava ser levada a um hospital. E foi o que fizemos, com
minha mãe me seguindo, ao volante do carro de Nice.Nossa viagem a Congonhas
só recomeçou duas horas depois, quando a filha de Nice chegou ao hospital.
Estávamos cansadas e atrasadas, mas aliviadas. Deixei Cingapura no banho
pensando que tão importante quanto campanhas de castração são ações que
conscientizem os donos dos animais da necessidade de identificá-los com placas
na coleira ou chips sob a pele -ações simples e baratas que garantiriam a volta
do animal perdido para casa assim que ele encontrasse alguém disposto a
ajudá-lo. Mas aí me lembrei de Nice. Ela tinha todos os documentos na bolsa,
mas também estava na rua, sem socorro. Não se trata de igualá-los na dificuldade
-embora não veja problema na comparação-, mas o princípio é o mesmo: é preciso
olhar para o lado e notar o problema do outro, quem quer que seja esse
outro!Talvez antes de chip de identificação nos cães seja preciso pensar num
botão que acione a solidariedade nos motoristas paulistanos.